
“tudo dorme e Alice ainda canta”
Juliana Blasina
Alice esteve conosco quando Nunca estivemos em Ítaca. Esteve também no primeiro livro de Daniela Delias, emaranhou os cabelos da Boneca russa em casa de silêncios. Em seus próprios dias, Alice gira as saias na urgência de espantar os pássaros antes que a poeta-fotógrafa enquadre o pouso. Alice anseia o voo. Cobre os olhos de Delias pedindo a ela que adivinhe, que adivinhe, mas o quê? Alice quer novos dizeres sobre velhas coisas. E a poeta se agiganta a comportar tudo aquilo que Alice desacomoda. Alice e os dias arranca de nós o que pensávamos não ter.
Alice, seus dias, suas águas
Micheliny Verunschk
Em Alice e os dias (Concha/2019) se desvela uma poética da ausência. Alice paira em um espaço mágico e fantasmático. Muito embora recorrentemente presentificada, se confirma como um Outro marcado pelo signo da perda, de uma ausência inexorável que só pode ser resgatada em fragmentos. Alice figura como uma metáfora poderosa (para o amor, para o feminino, para a própria natureza humana). E recompor a sua imagem é tão urgente quanto impossível: olhos, pele, língua, passo, seus dias. Alice escapa, escorre continuamente pelos dedos. É matéria que se esgarça ao mínimo toque. Há um tom melancólico e intimista que perpassa essa busca. A marca da morte está ali como um cão que gane baixinho. É sutil, mas é presente. Como recuperar o ser amado em totalidade se todo ser por ser amado é fundamentalmente inapreensível? Eis a aventura do sujeito poético. Alice é crepuscular. Delias constrói uma ilusão de intimidade e uma distância que se dissipa em proximidade. Tudo ambíguo, difuso, perturbadoramente real (...). Daniela Delias, com sua poética densa, elegante, segue construindo um território sólido e vai se confirmando como uma das vozes poéticas mais interessantes dos últimos tempos.
Encontre Alice ali na Concha:
Conheça dois poemas do livro:
Cordilheira
tudo em você é destino:
a arquitetura dos labirintos
a linha indivisível do meio-dia
a palavra cordilheira
tomando o chão das coisas
tudo em você é cume e partida
fuga de Dédalo, asas de Ícaro
mas destino, alice
não é um lugar
...
Armadilha
é sempre outro tempo
foi o que disse
quando o olhei nos olhos
e decretamos nula
a história do corpo
e aqui está você:
âncora e balão
herdando o mesmo peso
passo e encruzilhada
habitando as mesmas horas
mas o que pode o peso
contra seu corpo-pássaro?
o que podem as horas?
repare no tempo, alice
repare na armadilha:
ele passa
e sequer existe