
Encontre o livro no site da Patuá:
De labirintos e espirais (Patuá/2021): o livro que temos ao alcance dos olhos nos provoca enigmas já em suas primeiras palavras, antes mesmo que viremos a página. Sem as amarras linguísticas de uma predefinição, somos levados desde aí a certa espécie de pórtico que nos convida a transitar por universos em que se rarefazem os limites do espaço e do tempo. Alguns de nós, conhecedores de Jorge Luis Borges, podem antever, nessas imagens, o turbilhão de sua Biblioteca infinita. Se o labirinto nos remete ao sem-fim das passagens, as espirais nos convidam – e aqui falo de uma possibilidade entre muitas – à ressignificação constante dos caminhos que, percorridos, se fazem palimpsestos diante dos olhos, sob os pés: uma vez tendo transitado por entre esses versos, vamos descobrindo mundos outros no retomar de nossas próprias pegadas, ao recuperar os rastros que se deixam entre as palavras pelas quais indubitavelmente desejaremos passar outra vez.
Contrastando com a abertura simbólica e abstrata do título, a inscrição que se segue a ele vem a contrapeso, conferindo uma maior concretude e ancorando a leitura de sujeitos como eu, mais agoniados. Situados diante de sete poetas, ousamos prever o que nos aguarda. Somos também situados geograficamente: Rio Grande é, afinal, porto de referência das vozes que se anunciam. Engana-se, porém, quem se deixa levar por essa primeira tentação – tão comum num mundo pretensamente racional como o que habitamos – de traçar limites para o que se cria: cada poeta nos abre um oceano de outras diversas vozes que navegam as páginas nas quais Rio Grande, como cidade-estuário, é lugar também de passagem, tão efêmera e eterna, tão diversa e una quanto as nossas identidades sempre em construção.
Nas páginas que se seguem, aprendemos a caminhar pelo esfumaçar das fronteiras, aprendemos que Rio Grande é mãe de muitos filhos e filhas, de quem aqui nasce e de quem aqui chega e decide ficar. Vemos que Rio Grande é muitas, muitas vozes. Navegamos passados, presentes e futuros de forma nada linear. Reunimos memórias, mitos, geografias, sentidos, corpos, raízes, palavras, movimentos. Mergulhamos no que de nós em nós se esconde e atentamos para o que fora de nós sequer deveria existir, mas se faz cotidiano. Fazemos caminho, caminhando nas imagens que outros partilharam conosco para que fossem também nossas. Nos damos conta de que talvez nós também sejamos de versos.
Giliard Barbosa
Conheça um poema de cada autor do livro:
Batalha, um poema de Lena Fuão
com a força do verso
nos me protejo
faço trincheira das palavras
resistimo-nos
e espalhamos não armas
mas amor em forma de estrofes
o corpo-palavra nu luta
e na luta vence
antes a si mesmo
depois espalha pelo ar
perfume de livro
o livro aberto é uma indecência
...
A educação pelo álcool, um poema de Daniel Baz
Cobrir de álcool as sacolas,
as chaves, o telefone, os documentos.
Cobrir de álcool os chinelos,
os óculos, as moedas, os alimentos.
Aprender a primeira lição do álcool.
A telepatia sem símbolos do álcool,
sua língua cítrica em tocaia de faca,
seu pólen de máquina, sua sede de mármore,
seus calores de choro e chama.
Aprender as lições de distância do álcool.
O vazio ancestral de seiva que descumpriu o caule.
A longa agulha de sua palavra esfriada.
Seu hálito de poço, sua metafísica de muro.
Saliva e faísca – fundidas em mútua fome.
Aprender pelo álcool a esconder nossos corpos.
Enterrar nossos desejos
na transparência horizontal de seus desertos.
Tapar nossas cicatrizes,
os sinais de nascença, as maçanetas e os joelhos.
Os relógios, as varizes, as lâmpadas e os espelhos.
O couro gasto da voz
e a rotina arqueológica das unhas.
Até que acima de todos os objetos e afetos flutue
uma mesma epiderme burocrática,
ungida a números, descarnada e tática;
e a vida seja um susto retrátil,
um recolhimento inóspito, o castigo tátil
de sermos rasos.
(uma lição pelo álcool de permanecer submerso
como se fôssemos, do álcool, o avesso,
sendo o álcool nosso muco convexo.)
Sentir os diminutos dentes do álcool
cravando em nós seus vidros e brilhos,
seus trilhos de silêncio e elipse,
derramando sobre nós suas usinas
de água e fogo, em eclipse.
A educação pelo álcool.
Untar as mãos das crianças de álcool.
Deixar que mastiguem o vapor dos dedos.
Cuidar para que tenham o mesmo aroma
dos talheres, dos livros, dos anéis
das patas do cão e das frutas de plástico.
O mesmo odor ácido
de sangue falsificado em brasa.
Cobrir de álcool as religiões e os sotaques.
Cobrir os ascendentes e a psicanálise.
O bóson de Higgs
e a transformada de Fourier.
A teoria de Parmênides
e “O encontro”, de Courbet.
Cobrir de álcool os castelinhos de areia
das praias da nossa infância
e as pedras nos poemas de Cabral.
Aprender pelo álcool
que não há higiene maior que a do medo,
que certas matérias se limpam de dentro para fora –
começando pelos segredos, terminando pelos poros –
em fôlego de parto, em fuga de esporos.
Construir pelo álcool um mundo inflamável
e esperar a primeira lição dos fósforos.
...
Naufrágio, um poema de Aimée Bolaños
Sobrevivi à tormenta
aferrada à tábua do desejo.
Recolhi os míseros fragmentos
e armei minha balsa de Medusa.
Naveguei o tempo em solidão.
Nenhum porto me deu abrigo
até descobrir uma praia
de escuras águas intermináveis.
De novo salvei pedaços
e no espaço do ar
fiz minha casa impossível
tão semelhante ao nada.
A viagem me transformou.
Tenho mil rostos reais
tão alegres como tristes
uma frágil alma persistente
duas línguas e um corpo sábio
que resiste aos naufrágios.
...
Face, um poma de Danilo Giroldo
A face tem vinte músculos
Máscara de carne
que contorce com a dor
congela de frieza
ruboriza de vergonha
enruga com o ódio
empalidece de pavor
Percebo agora o tecido atado
suave e sufocante sobre o rosto
cobrindo mais que nariz e boca
De quem estamos nos protegendo
Quantas máscaras existem
entre a pele e o pano
Ouço um rangido constante
As tábuas do caixão rompendo
grãos de terra ganhando o ar infecto
acariciando lentamente o corpo
até o abraço da decomposição
a última de todas as pressões
Já não sei de quais doenças estamos falando
Tento conectar olhos encéfalo punhos
Investir contra a lâmina que desce
veloz mortal carrasca e redentora
Sei que se não for agora
não será jamais.
...
Fúria, um poema de Daniela Delias
sobrevive-se à fúria extrema das manhãs
à memória das portas que abríamos em silêncio
desejando que o amor nos ensinasse a cair
não tão alto, dizíamos
não tão longe
depois, alinhávamos as pernas
estendíamos mil pontes
e partíamos e partíamos
como se destinados ao cume
sobrevive-se, suponho
às cidades exiladas de nossos olhos
e à lembrança das janelas
que encostávamos um pouco
toda vez que distraíamos a morte
...
Continente, um poema de Sérgio Carvalho Pereira
Nasci pra teu cantor e testemunho,
rascunho de tuas falas e tuas gentes
e ando a traduzir-te, Continente,
do que gravaste em mim de próprio punho.
A terra é contadeira de histórias,
de ventos, de mormaços e invernias,
do homem, rasgador da geografia,
da errância transformada em trajetória.
Teus mares, que são dois, único cais,
um é de sais de barcos e lonjuras,
o outro, pra poente das planuras,
mar doce que espelhou as catedrais.
Sou de tua gente crente e pagã,
irmãos de Blau na sina vaqueana,
de ombrear com Martín Fierro em Santana
e bandear com o Tio Lautério o Camaquã.
O verso quando encontra o elemento
e trama com seu mundo um segredo
é verso, é Continente de São Pedro,
um todo, sem fronteiras e sem tempo.
...
Aplainada, um poema de Juliana Blasina
É como se o corpo perdesse
v a g a r o s a m e n t e
a verticalidade
janelas de vidros fechados
desproporcionam lonjuras:
o sol entre as roupas do varal
a lua escondida atrás
da parabólica abandonada por um vizinho morto
o mundo estreitado em setenta metros quadrados
não requer escadas
o teto ao alcance de uma vassoura
a tinta depois a laje depois a telha depois
o céu
em algum lugar lá fora
cem metros mais distante
a cada quarentena dias.
...